quarta-feira, 22 de junho de 2011

(Dorinha) Um Gelado Sob o Luar

Este texto é uma continuação do post anterior: "Joguetes do Desejo" (leia aqui) e recomendo que, para melhor compreensão, você leia o primeiro conto da "saga" antes de prosseguir com a leitura deste, caso não tenha lido ainda. Espero que goste. E um obrigada a meu leitor-crítico, que vem me ajudando bastante com a criação dos contos da Dorinha. rs.... Kissus! =)

(Dorinha) Um Gelado Sob o Luar

         Era lá pelas oito da manhã. Dorinha ajudava D. Frozina com a louça do café. “Menina, o que você está fazendo?” – perguntou a velha ranzinza ao perceber que Dorinha estava mergulhando a bucha de prato limpa dentro da panela embebida de graxa. “Hã? Eu...” – a moça tornou de seus devaneios. “Acorde pra vida! E termine logo de ariar as panelas! Ainda temos que arrumar os quartos”.
         A velha saiu da cozinha arrastando os pés. Dorinha deixou a mão suspensa no ar um instante e olhou para o nada. Mergulhou na lembrança. Já fazia dois dias que o beijo se sucedera. Suspirou ao reviver o momento em sua mente: “Arnaldo foi tão vigoroso...”. “Vamos, criatura! Não temos o dia inteiro! – D. Frozina voltou de repente. – Deixe pra sonhar quando acabar o serviço”. “Tudo bem, tia. Já estou acabando!”
         Do outro lado da rua, na sapataria, Arnaldo também recordava o beijo. Nitidamente. Como num filme.

As bocas descolaram. Ele estava sem fôlego. Ela também. “Solte-me” – disse ela devagar. Ele soltou seus pulsos e deixou-a passar. “Você não gostou do beijo?” – perguntou desalentado ao vê-la quase alcançando a porta do banheiro. “Foi bom” – disse simplesmente e se foi.

         “Que dor! – Arnaldo apertou os olhos ao atingir o polegar com o martelo. – Preciso me concentrar no meu serviço. Respira. Isso. Concentre-se, Arnaldo!”
         Muito embora não tenha se machucado mais naquele dia, ele não parou de pensar na espevitada Dorinha. E ela a mesma coisa: rendeu a metade do que o costumeiro nos serviços domésticos. Sendo obrigada por D. Frozina a refazer alguns deles.
         A noite caiu despercebida. Porém, a lua estava cheia, e logo foi vista por Arnaldo, que acabava de sair da sapataria. “Nossa, que lua magnífica! Esse luar... Seria ótimo para sair com... Se ao menos D. Frozina permitisse...” – e foi para casa a devanear.
         Chegou, tomou um banho, mas não vestiu a regata e o short. Não. Vestiu uma camisa e a calça. Comentou sobre a lua durante o jantar, lançando olhares para Dorinha. Saiu de casa logo após a refeição, rezando intimamente para que a moçoila tivesse entendido a mensagem implícita no último olhar lançado por ele antes de atravessar a porta da rua.
         Arnaldo ficou escondido atrás da escada e chamou Dorinha num sussurro assim que a viu descendo os degraus. “O que você quer, Arnaldo?” – disse, fingindo impaciência. “Quero observar a lua na sua companhia. Olha como está linda!” – maravilhou-se. “É, está mesmo! Mas aqui é perigoso. Se minha tia cismar e vier me procurar aqui fora?” – sua voz tinha um tom de inocência. Arnaldo então sugeriu que fossem tomar um sorvete a duas ruas dali. “Está bem – concordou ela. Só um gelado e voltamos” – e espichou o pescoço para ver se não tinha ninguém olhando antes de sair do canto escuro.
         Enquanto caminhavam, ele tentou entrelaçar sua mão na dela, mas esta ficava rubra e não permitia. Arnaldo ainda conseguiu enroscar seu dedo mindinho no dela por alguns segundos, mas logo chegaram à sorveteria e ela desenroscou o dedinho que lhe pertencia.
         “Eu quero um gelado de chocolate!” – Dorinha foi logo avisando. “Dois gelados de chocolate” – disse Arnaldo para o garçom. Enquanto esperava, ele a fitava. Nossa, quanta vontade de dizer-lhe que não parava de pensar no beijo! No fundo, gostaria de repeti-lo dezenas, centenas de vezes. Ela, por sua vez, agitava-se por dentro com aquele olhar fixo em sua alma. Ansiando secretamente que ele a beijasse novamente.
         O garçom trouxe o pedido. Arnaldo ficou observando a desenvoltura de Dorinha em saborear o sorvete. “Não vai tomar o seu? Vai derreter!” – alertou. “Que nada! Não tem sol!” – foi quando sentiu algumas gotas em sua mão. “Eu disse!” – zombou. Arnaldo então pegou um pouco com o indicador e melou a ponta do nariz dela. “O que está fazendo? Você me melou... Ah, mais agora você vai ver só!” – e afundou a sua casquinha no rosto dele até melecá-lo todo. Depois saiu irritada, tentando limpar o nariz com um guardanapo de papel. “Dorinha, espere!” – Arnaldo levantou às pressas, passando um lenço no rosto. Deu uma corridinha e a alcançou. Segurou-a pelo pulso e girou-a. O coração de ambos foi a mil.
         “Eu não quero mais conversa com você!” – declarou Dorinha. “Não precisa dizer nada” – a voz dele foi sumindo com o decorrer da frase até que as bocas se aproximaram de tal forma a nada mais precisar ser dito. Dessa vez as mãos de Arnaldo não seguraram seus pulsos, mas sua cintura, trazendo-a para junto de seu corpo o mais perto quanto era possível. “Você...” – sua voz saiu meio rouca. “Eu te machuquei?” – perguntou inseguro. “Não. Eu... Você me beijou de novo... Por que fez isso, afinal?” – e desvencilhou-se de seus braços, dando-lhe as costas. “Eu gosto de você... Não sei explicar... Fico fora de mim quando está por perto...” – confessou. “Mesmo?” Ele assentiu. “Minha tia nunca permitiria. É melhor você esquecer! E obrigada pelo gelado” – e saiu tropeçando nos próprios passos, mas não o deixou perceber sua vontade de voltar para seu enlace.
         De súbito, dois homens de chapéu, capa e lenço cobrindo a parte inferior do rosto aproximaram-se e abordaram Dorinha. "Passa o colar!" - ordenou o mais alto. "Meu colar?" - ela segurou a jóia entre os dedos. "Foi isso que eu disse" - o homem estava impaciente. "Mais foi de minha mãe..." - Dorinha começava a ficar nervosa. "Olhe, belezura, se você entregar o colar, eu a deixo ir sem nenhum arranhão..." - o seu tom de voz era levemente ameaçador. "Passe o colar" - o outro, mais baixinho, encostou uma adaga na altura do fim de suas costas. Dorinha suava frio: "Por favor... Esse colar não vale nada... Tem apenas um valor sentimental pra mim!". "Você é muito jeitosinha, sabia?" - o mais alto passou a mão em seu rosto, provocando-lhe asco.
         "DORINHA! - Arnaldo a viu de longe. Aproximou-se rapidamente num arroubo inconsequente. - Tire suas patas sujas de cima dela!" - ordenou. "Quem vai me impedir? Um fracote como você?" - inquiriu o mais alto em tom de escárnio. Arnaldo voou em cima do sujeito, pegando-o de surpresa, e tacou-lhe um soco nas fuças, tirando-lhe um pouco de sangue do nariz. O mais baixinho saltou sobre Arnaldo e os três foram ao chão. Dorinha aproveitou a confusão e correu, voltando pouco depois com um guarda. Este levou os dois ladrões e ainda ameaçou levar Arnaldo por agressão, mas a espevitada Dorinha convenceu-o a não fazer isso.         Arnaldo e Dorinha voltaram para casa. Na entrada da pensão, Dorinha parou e olhou-o nos olhos. "Você foi um herói!" - e beijou-o. Arnaldo, pego de surpresa, ficou sem reação. Ela apertou sua nuca e ele acordou de súbito, puxando-a pra si e correspondendo ao beijo com vigor. 
         Em alguns segundos, os olhos lânguidos de Dorinha deram lugar a uma postura ereta e um olhar matador. “Eu vou entrar pela porta dos fundos e você pela da frente” – combinou, mais mandando que pedindo. Em seguida, antes mesmo que ele consentisse, Dorinha esgueirou-se pela sombra até a parte de trás da casa. Arnaldo ficou ali parado, só observando e pensando: “Dorinha... Ah, Dorinha! Quando você vai deixar de ser tão escorregadia? Quero... Desejo tê-la em meus braços! Mas como? Se sempre escorre por entre os meus dedos... Meu Pai – voltou-se para a lua –, eu quero essa mulher pra mim! Estou já enlouquecendo!” – bradou em súplica e entrou em casa, subindo direto para o banheiro a fim de tomar um banho frio.

Um comentário:

Anderson Meireles disse...

Sinto-me muito privilegiado por estar acompanhando a criação desse conto. Adorei o nome da continuação! Muito poético!
Abraço!