sábado, 3 de novembro de 2018

Deméter estéril


A língua é tão velha, tão velha.
Às vezes tão ressequida.
Às vezes tão dura, que dói dizê-la.
Dói tanto, que nos recusamos a ouvir nossa própria voz.
Há esses dias mesmo:
Dias em que estamos tão saturados de nossa ortografia e sintaxe,
Que sequer aguentamos ver nossa letra no papel;
Não aguentamos sequer ler nossos próprios textos.
Estou assim esses dias: meio ranzinza, meio amarga.
A Musa tem me abandonado mais do que o costumeiro.
Sim, estou velha esses dias.
Muito velha.
Muito íngreme e viscosa.
Quem sabe quando os olhos se remoçarão?

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Reconhecendo o caminho


Há pouco mais de um mês, vinha eu no ônibus, recostada à janela e preocupadíssima com o trabalho de Morfologia. Então, do banco de trás, uma senhora interpelou-me:

- Minha filha, você, que é médica...

“Médica? – pensei. – Eu não sou médica.” Nesse momento, meneei a cabeça ligeiramente para o lado e esse meu gesto foi interpretado como uma negativa pela senhora, que reformulou sua fala:

- Você, que é professora, me explica uma coisa. – Parei e ouvi. Já estava quase na minha hora de descer do ônibus, mas, como fui reconhecida como professora, senti-me com o dever moral e humano de acolher sua dúvida. E ela veio: – Eu vi ali: “Crie seu caminho”. O que isso significa?

Parei, surpreendida. “Crie seu caminho” – repeti para mim mesma. Um enunciado tão claro para mim; tão óbvio. Para mim. Contudo, a senhora percebia-o obscuro.  Então, como tornar claro para ela também?  O que é criar o próprio caminho? Matutei isso por alguns segundos, antes de responder:

- Significa criar a sua existência; fazer da sua vida o que a senhora gostaria que ela fosse.

- É isso? – surpreendeu-se.

- Sim. Acho que é isso – confirmei, sem saber como aprofundar minha resposta.

A senhora agradeceu e eu, antes de descer do ônibus cheia de mafuá, olhei-a e sorri. Embora ela tenha me chamado de professora, não sinto que respondi como professora. Antes, respondi como alguém, que está ainda descobrindo como criar seu próprio caminho. Respondi, portanto, do lugar de humana.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Três dias


Foram dias de paz.
Sim, três dias de paz.
Três dias de ressaca do mar.
Três dias de receber mais do que dar.
Três dias em que mantive minha imaginação quase inativa.
Três dias para descansar da loucura da vida.
Três dias para viver.
Três dias para conhecer e revisitar os clássicos do Cinema.
Três dias para rir e se emocionar junto.
Três dias para dormir e acordar em horas atípicas.
Três dias para desacelerar.
Três dias para bebericar consciência, ao som de grandes músicas.
Três dias para amar e ser amada.
Três dias de gratitude.
Gratidão pela infinitude de sua humanidade e de seu amor.

domingo, 4 de março de 2018

Foda-se


Foda-se, se você acha que minhas lágrimas são infundadas. Eu vou chorar onde e quando quiser; sempre que sentir necessidade.
Foda-se, se você não gosta que eu fale ou do que eu falo. Eu falo do que gosto e do que me transborda. Eu sou tagarela, sim!
Foda-se, se você me acha antissocial. Eu só busco pessoas que me fazem bem.
Foda-se, se você não gosta do meu corpo volumoso. A voluptuosidade é minha e é deliciosa!
Foda-se, se você acha que eu deveria ser uma boa menina. Eu não sou domesticável. Eu sou uma anti-heroína.
Foda-se, se você me acha lenta em minhas produções. Eu me deito e me deleito com cada traço, cada letra. Eu me desobrigo a seguir um ritmo de produção fabril.
Foda-se, se você acha que eu deveria seguir o padrão midiático de beleza.  Eu não preciso seguir ninguém. Eu me faço em meu caminho.
Foda-se, se você acha que eu deveria ser forte e sorrir o tempo inteiro. Eu sou humana. Eu preciso de colo também.
Foda-se, se você acha que eu lhe devo dedicação exclusiva. Eu tenho outras pessoas, compromissos e projetos para dar atenção também.
Foda-se, se você não gosta do meu cabelo curto. Minha feminilidade não está nos cabelos. Está no meu eu mais profundo.
Foda-se, se você acha que eu deveria ter um namorado. Não quero ter um relacionamento só para dizer que tenho. Quero um relacionamento de verdade.
Foda-se, se você acha que eu deveria andar como uma boneca. Prefiro o rosto livre de máscaras e os pés nus.
Foda-se, enfim, se você acha que eu deveria ser como você gostaria que eu fosse. Eu não me permito mais ser quem eu não sou.

domingo, 7 de janeiro de 2018

Do desenho que lhe prometi


Acabo de queimar o desenho que lhe prometi. Eu sei, eu o prometi a você. Também sei que, quando o prometi a você, meu sentimento ainda parecia recíproco. Tanto parecia, que convenci-me a desenhá-lo. Agora, vejo o fogo alto queimá-lo. Em breve será pó, exatamente como as minhas esperanças. Queima, coraçãozinho, queima. Queima cada lágrima, cada sonho.
Enquanto observo o laranja quente do fogo, lembro com exatidão o quanto você ficou empolgado quando viu o desenho e a carinha que você fez ao pedi-lo para mim. Eu pensei, sincera e ingenuamente, que você soubesse o que aquele desenho representava e que, justamente por sabê-lo, você o queria para si. Mas você não sabia, ou fingiu não saber, que eu queria para nós exatamente aquilo que eu havia traçado e colorido no papel. Eu, porém, tinha plena consciência disso e, agora que este amor morreu antes mesmo de nascer, não tenho mais motivação para concluir o desenho. Não tenho motivação para alimentar um sonho que era só meu. Então, resolvi rasgá-lo e queimá-lo. Afinal, se você não quer a situação que o desenho ilustra, também não darei minha arte a você. Prefiro extingui-la, assim como extinguirei o sentimento que tenho por ti.