quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Prostituta

 


Eu era sua prostituta. A prostituta mais infame de todas, porque eu nunca recebi um real por lhe dar prazer. Eu sequer tenho o direito de dizer que eu era uma prostituta, sob o risco de ofender à categoria. Entretanto, era exatamente assim que eu me sentia.


Meu corpo estava à sua disposição. Você podia usufruir dele a qualquer hora do dia ou da noite. Você podia, se assim quisesse, furtar-me do sono dos anjos e arrastar-me para a sua cama, ao soar as doze badaladas da meia-noite. Você sequer se importava se eu sentia prazer com o que fazíamos. Bastava que você gozasse e estava tudo certo. Você podia me beijar, me morder, me chupar; enfiar o seu pau onde bem entendesse em mim. Meu corpo estava à sua disposição mesmo.


A verdade verdadeira (e indesejável) é que só as suas necessidades fisiológicas importavam. Quantas vezes eu não te liguei, para falar da minha saudade e do meu tesão, mas só nos encontrávamos quando você estava faminto? É, só a sua fome importava mesmo. Eu que desse um jeito ― qualquer que fosse ― de me manter úmida enquanto você não me procurasse.


 Eu era uma prostituta mesmo. E eu sequer sabia rosnar; sequer sabia dizer que não estava bom para mim, que me machucava. Na verdade, eu era muito pior do que uma prostituta: eu estava cega e surda de paixão e tentava convencer a mim mesma de que as migalhas que você me dava eram o bastante para alimentar-me.


Eu devia ter rosnado; ter gritado; ter te arranhado, se fosse o caso! Mas eu não deveria ter aceitado servi-lo com tamanha devoção. Sim, eu o servia. Eu era uma lobinha inexperiente e ingênua e não vi que nosso relacionamento estava muito longe de ser uma parceria. Eu era sua prostituta e só. Eu o amei? Amei. E, exatamente por isso, fui mais prostituta do que uma prostituta de fato. Porém, só agora abri os olhos para minha leseira.


Só desejo uma coisa: que meus olhos permaneçam abertos, quando o próximo amor chegar.


terça-feira, 11 de agosto de 2020

Sobre aquietar e deixar ferver

 



Minha criança, se é mesmo amor o que você sente, aquieta e espera a paixão assentar. Espera, como a terra espera a semente germinar; com a mesma paciência e doçura. Oh, criança, respira e acolhe essa semente enquanto ela germina. 

Eu a conheço, minha doce menina. Eu sei da sua fome e deste jejum prolongado, no qual você se arrasta. E eu também sei que um jejum muito longo nos faz comer até pedra. Aquieta. Respira. Diz para o seu corpo: "Eu sei que você está com fome. Mas eu gostaria de esperar por algo que realmente nos alimentasse a alma". Sei, todavia, o quanto as necessidades do corpo parecem imperiosas, sobretudo na juventude. Por isso, aviso: não é fácil persuadir o corpo a esperar para ter suas demandas atendidas. Porém, respira.

Minha garotinha, escuta o que esta bruxa anciã lhe diz: sei que você está fervilhando, mas não se apoquente. Respira. Deixa ferver. Deixa esse amor cozinhar no tempo dele. O caldeirão não vai transbordar. Eu estou aqui.

Minha criança, ouço-a ostentar o fogo dia e noite, mas eu a conheço em profundidade. Eu ouço o que você não diz e eu farejo seu segredo mais cálido: você é água e tudo o que mais quer é fluir e transbordar. Contudo, você represa a si há tanto tempo que tem medo de se afogar em suas próprias águas, caso abra as comportas. Mais uma vez, respira. É a fome que está criando todo este caos interno. Lembra: famintos, comemos até pedra.

Oh, minha pequena, quando é amor de verdade, é leve. Sendo assim, busca a leveza em tudo que concerne àquele por quem viceja neste momento.

domingo, 2 de agosto de 2020

Quando um barquinho de papel tenta conter o oceano



Créditos na imagem


Aos doze anos, aprendi a transformar tudo aquilo que se passava dentro de mim em palavras, ou seja, em literatura. Já são vinte e um anos transformando o sentir em prosa. Uma prosa que não é de botequim, mas que se tornou igualmente deliciosa e viciante. Tanto, que me acomodei: preferia dizer o que estava sentindo do que, efetivamente, aquietar e sentir. Para mim, bastava escrever sobre o amor que, porventura, sentisse e o ser amado já saberia que eu o amava. Por conseguinte,  troquei gestos por palavras vezes sem conta.

Não obstante, agora, que as palavras são imprescindíveis, já que devemos tocar o mínimo possível nas pessoas, meu Mercúrio em Capricórnio me deixa na mão. Eu até tento verbalizar o que sinto, mas todas as palavras me abandonaram. A propósito, onde estou não há palavras. Só um êxtase intenso e profundo. Mesmo assim, sobrevive nesta prosadora crônica a necessidade imperiosa de comunicar o que estou sentindo. Todavia, Mercúrio me deixa na mão mais uma vez: como comunicar o anímico? Dizer que estou apaixonada é muito pouco. Pior: é reducionista.

O que sinto é um transbordamento indizível. Não há imagem poética capaz de abarcá-lo completamente. Reduzi-lo desta forma seria como querer que um barquinho de papel contivesse o oceano em si. Impossível. Nesta vivência oceânica, eu sou o mar. E talvez o próprio mar não esteja transbordando tanto quanto eu. Apesar disso, sinto uma leveza e uma doçura, aparentemente incompatíveis com o que entendemos por transbordar.

Não sou poeta. Nunca fui. Sou uma prosadora crônica e me reconheço assim. Entretanto, de que me adianta ser uma cafetina das palavras assumida e não conseguir dizer o que estou sentindo? Para mim, é muito desafiador apenas sentir, por mais delicioso que seja esse transbordar. Ademais, para a escritora, é deveras frustrante que a sintaxe não transborde junto comigo.

Eu sinto falta das palavras. Muita. Eu gostaria imensamente de convidá-lo para um transbordamento mútuo, apesar de Mercúrio ter me abandonado. Uma parte de mim, porém, preferiria que você sentisse o quanto eu o amo, sem qualquer interferência da gramática. Ainda assim, eu insisto em dizer: “Eu o amo. Estou completamente apaixonada por você. Mas, reconheço: se você pudesse olhar nos meus olhos, eu não precisaria dizer mais nada”.


segunda-feira, 27 de julho de 2020

Eu te ofereço o meu coração

Foto by: iStock

Com todos os seus medos e anseios
Com todas as suas histórias e entremeios
Com todas as suas tempestades e floreios
Com toda sua secura e arrodeios
Com toda a sua brandura e receios
Com toda a sua instabilidade e esteio
Com toda a ordem e o caos de permeio
Com todas as inspirações que antevejo
Com todo o fogo que sobejo
Com toda a facilidade em abrir-me que almejo
Eu te ofereço o meu coração.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Um corpo que clama por sentir



Neste dia frio e chuvoso de um quase junho, eu sou um corpo. Um corpo que clama por sentir. Sentir com o corpo todo, não apenas com os olhos e ouvidos. Sentir tudo o que houver para ser sentido. Preciso sentir o mundo ao vivo e a cores. E sentir vai muito além de ver a chuva na varanda, soprando sonhos em nossos ouvidos.
Eu sou um corpo. E o frio, mais do que o calor, recorda-me isto a todo instante. Eu sou um corpo que anseia por ser aquecido. Um corpo. Um corpo vivo e pulsante, que não pode ser suplantado por ideias ― por mais prolíferas que estas sejam.
Eu sou um corpo. Um corpo que, confinado, anseia por outro corpo. Um corpo que clama por sentir. Sentir tudo o que houver para ser sentido. Sentir o olho no olho; o pele na pele. SENTIR. NÃO VER. Afinal, eu sou um corpo. UM CORPO.
Eu sou um corpo. Um corpo que sente toda a intensidade da minha Lua em Leão. Um corpo que sente toda a urgência da minha Vênus em Sagitário. Um corpo que sente o menor estímulo. Um corpo tão vivo que, muitas vezes, desço aos recônditos da minha mente para não senti-lo com tanta força.
Eu sou um corpo. Um corpo que ferve, expectante. Um corpo que observa a chuva na varanda, sonhando com um café quente e forte ― em boa companhia. Eu sou um corpo. Um corpo tantas vezes negado em prol de uma sobrevivência em sociedade.
Eu sou um corpo. Um corpo que clama e suspira por liberdade, desde muito antes da quarentena que nos foi imposta. Um corpo que anseia por viver tudo o que houver para ser vivido.