segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Diluir é a tarefa mais difícil de todas


Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é entregar-se e entregar-se, para o ego, é fraqueza.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é confiar que todos os tesouros do seu coração estarão lá quando você retornar.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é não ter medo de desaparecer; não ter medo de perder a sua identidade enquanto estiver fundido.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é não ter medo do imprevisto; não ter medo das mudanças de curso.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é abandonar o que você queria que fosse, para viver o que é.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é correr o risco de não ter palavras ou cores para descrever o que você está sentindo.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é não saber onde você vai desaguar e, mesmo assim, seguir o fluxo.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é não ter um caminho rigidamente pré-estabelecido. Diluir é um convite para espalhar-se por todos os sulcos que aparecerem pela frente.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é movimento ininterrupto.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é a solução. Solução no sentido alquímico do termo: liquefazer cada situação dessa e permitir que ela escorra e evapore.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é deixar ir; é não apegar-se nem ao que é bom nem ao que nos faz sofrer.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é amar verdadeiramente, pois diluir é libertar a si e ao outro.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas. Diluir é confiar que o leito nunca estará seco. Assim que passar uma água virá outra, e depois outra, e depois outra, ad infinitum, pois a Fonte nunca seca.

Diluir é a tarefa mais difícil de todas, mas é o destino de todos os seres.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

(Des)encontros nas livrarias da vida


Confesso que, apesar de ser leitora voraz e prosadora crônica, eu nunca fui uma frequentadora assídua de livrarias; embora o meu tio-avô fosse o dono de uma das livrarias mais conhecidas da Paraíba: a Livraria do Luiz. De tal sorte que nunca tive vivências extraordinárias nas livrarias que cheguei a frequentar. Mas a vida gosta de nos surpreender.

Semana passada, na livraria de um importante shopping da capital paraibana, encontrei um amigo do Facebook. A bem da verdade, foi um (des)encontro. Não havíamos combinado nada e nem eu sonhava em encontrar qualquer rosto conhecido lá. Sendo bem sincera, eu tenho a (in)felicidade de andar por esta ilustre província sem encontrar nenhum rosto conhecido. Então, quando o vi na livraria, eu fiquei sem ação. E, enquanto o atendente buscava o meu pedido no sistema, arregalei os meus olhinhos de cometa para o homem ao meu lado no balcão: “É o Carlos Adriano?!”. E, em minha mente, ensaiei inúmeras vezes uma abordagem: “Oi! Você é o Carlos Adriano?”. De repente, o homem me olha com olhos tão arregalados quanto os meus. Nesse instante, fiquei ainda mais temerosa de perguntar se ele era o Carlos Adriano e a situação tornar-se ainda mais esquisita e constrangedora.

Cerca de cinco minutos depois, o rapaz trouxe a minha encomenda e eu fui para casa, ainda com a pergunta não verbalizada: “Será que era o Carlos Adriano mesmo?”. Definitivamente, eu precisava descobrir se tinha sido ele mesmo que eu vira. Por isso, mandei-lhe uma mensagem no Facebook, perguntando se fora ele que eu vi àquela tarde na livraria, mas, em princípio, não obtive resposta. No dia seguinte, insisti. Mais que isso: disse que, se de fato era ele, me perdoasse por tê-lo olhado com olhos tão arregalados. Contudo, só obtive uma resposta sua no dia subsequente: “Ah, era você também?”. Rimos juntos da situação: dois assustados numa livraria. Então, ele me disse que também desconfiara que eu era eu, mas que também não tinha tido coragem de perguntar.

“Viver dói”, disse Clarice Lispector. Sabemos todas as convenções sociais, mas, na hora de aplicá-las, reagimos como crianças estupefatas: nossos olhos se arregalam e a voz nos falta. E ficamos tão abismados com o que experienciamos, que perdemos a oportunidade de conversar sobre arte e literatura, enquanto tomaríamos um café. Tudo bem. Fica para a próxima.

Não obstante, desejo que, no próximo encontro orquestrado pelo Destino nas livrarias da vida, eu não me assuste tanto e seja mais fácil uma aproximação.

domingo, 14 de julho de 2019

Asas de chumbo

Desenho by: Sofia Cesar
Minhas asas pesam. Minhas asas me pesam. Pesam, sobretudo, porque não sei voar com elas. Asas inúteis! De que me servem? Eu quero destroçá-las! Quero esquecer que tenho asas e não posso voar. Eu as pinto, para que fiquem lindas. Lindas e inúteis. Beleza nunca aqueceu asa para o voo.

Minhas asas... pesam. São um fardo que carrego, sem poder usá-las para o que foram feitas. Se a natureza delas é serem asas, o que as impede de voar? A elas, nada. A mim, o medo de ser voo.

Minhas asas me aborrecem. Aborrecem, porque preciso cuidar para que permaneçam lindas, mesmo sem usufruir delas. De que me adianta ter asas e não ser livre? De que me serve ter asas e viver dentro de um círculo de giz riscado no chão?

Minhas asas me aborrecem. Aborrecem mais ainda, porque renascem sempre que as desfacelo. Aborreço-me sobremaneira, porque não consigo exterminá-las em definitivo. Aborrece-me ao infinito não crer que posso voar com elas.

Minhas asas são insustentáveis. São asas de chumbo as minhas. Nelas, concentro todo o meu medo de ser luz. 

sábado, 23 de março de 2019

Mente, Beta



       Minha cabeça está cheia. O caos dos primórdios se instalou em minha massa encefálica. Quantos titãs brigam por espaço dentro de mim? Quantos dilúvios escorrem pelos meus olhos? Nikola Tesla está testando a potência das minhas sinapses. Einstein afirma que o maior mistério do meu cérebro é a sua total compreensibilidade. Enquanto Moisés tenta abrir o Mar Vermelho, Ulisses tenta voltar para Ítaca. São tantas sereias cantando ao mesmo tempo, que quero matar todas. Vou passar cera em seus lábios, para que nunca mais cantem. INFERNO! Onde está Dante? Onde está esse maldito castelo que nunca chega? Que sonho dentro de sonho, dentro de sonho, dentro de sonho é esse? Se ao menos acordasse metamorfoseada num inseto. Se pudesse encontrar o meu eu do futuro num banco de praça. Meu anjo da guarda sumiu. Estará salvando uma irmã minha na Índia? Minha mente é o pior dos mundos possíveis e impossíveis. Que labirinto bórgio-sulfúrico é esse? Estou tentando dormir e não consigo. Sintagmas incognoscíveis sobrevoam minha carniça. Eu não tenho nada. Eu não sou nada. Precisarei morrer para ter uma boa noite de sono? Ao menos até o dia do Juízo Final. Quando eu defender o meu TCC, talvez eu tenha uma amostra grátis do Paraíso. Eu, tão Ródia, tremendo feito vara verde. Tudo culpa do superego. Quando teremos notícias frescas neste disco? Você não sabe amar, meu bem. Eu sou poeta e não aprendi a amar. Ninguém está nem aí para o formidável enterro de minha última quimera. Só existe passado em minha mente. Este desespero era moda em 1973. Quantos escritores já se suicidaram? Eu oscilo entre Almodóvar e Woody Allen. Eu vejo o muro ruindo, ruindo, ruindo. Usem minha cabeça para segurá-lo. Cortem-me os pés. Estes malditos sapatinhos vermelhos não param de dançar. Tudo culpa daquele milica aposentado que batucou neles com os dedos. Jacobina está cego de tanto olhar-se no espelho. INFERNO! Essas sereias não ficam afônicas nunca? Onde está o firmamento seguro do herói clássico? O Paraíso é só um asilo para idosos. E a velha se jogou do 5º andar, para encontrar o marido no inferno. Preciso de férias de mim mesma. Preciso ir para algum lugar onde eu não tenha passado. Mandem todos para o quinto dos infernos! Eu não aguento mais tantas obras inacabadas. Vou queimar todas. A começar dessas cigarras infernais na minha cabeça. Nenhuma sintaxe é boa o suficiente para mim. E Kafka achava que morreria antes de produzir algo válido. E Nando achava que ia montar uma prelazia no Xingu. E eu achava que poderia viver tranquila no centro da minha mente. Minha mente é o pior dos mundos possíveis e imagináveis. E o mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito.