quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Ode ao Amor que Nunca Hei de Amar

Já o amo, mas o amar sucumbirá sem ser amado.
O objeto de afeição, tão puído, esfarelará.
O tinteiro para qualquer ode nunca usado.

As palavras apenas imaginadas
Sumirão do papel que jamais tirei da gaveta.
A árvore, sua mãe, a gestá-lo não chegou.

A ideia nasceu destinada a perecer
Tão logo atingisse a consciência.
Se me ponho a escrever,
Esvai-se a sapiência.

A semente estrangulada é.
A ode que deveria advir destas linhas
Morre sem ser proclamada.
A arte é mesquinha.

sábado, 12 de outubro de 2013

O Menino Fernando



      No dia das crianças, nasceu Fernando Sabino no belo horizonte das Minas Gerais. O homem nu, cuja alma infante despia-se completamente nas letras. E foi com esse espírito jovial que ele marcou um encontro com a vida e gravou seu nome na literatura brasileira. E o menino Fernando, no espelho, encantou-nos com sua eloquência singular e sua alegria de viver. Em seu íntimo, desde a infância, rompiam muitos sonhos. Sonhos travessos que brincavam de escrever e resultavam em grandes inspirações; tão almejadas pelo jovem Eduardo Marciano. E nós, fãs, temos muita sorte por a literatura ter sido desde sempre a grande namorada de Fernando Sabino. E hoje, mesmo já tendo morrido seu corpo, sua alma infante continua viva entre nós através de seus textos, tendo aquela conversinha mineira, fluida e gostosa de ler, como sua principal característica. E, se ainda restar alguma dúvida, eu não nego que sou profundamente apaixonada por este que nasceu homem e morreu menino.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Mente em Tempestade



A angústia que em mim se faz
Nesta viagem interiormente atroz
Regurgito este pobre sentimento veloz
Que em pensamento se espraia.

Uma nuvem em mim se forma
E logo sou tempestade.
A tristeza da culpa intempestiva.
O trovão da raiva deglutida.

Depois da tempestade vem a fuga.
Fuga de mim. Fuga da própria fuga.
A calmaria é o caos.

Pobre desta angústia que me invade.
Tornou-se escrava da minha mente
Sempre tempestade.

sábado, 27 de julho de 2013

O Castigo de Damião

Este texto estabelece uma intertextualidade com o conto O Caso da Vara, de Machado de Assis. Escrevi-o, pois sempre senti falta de um 'final' para Damião no texto machadiano.



      Damião encarava o teto. Seus pensamentos atravessavam-no como um cortejo de almas. A culpa verminosa corroia-o. Ele, que chegara à casa de sinhá Rita num clamor por liberdade, permitiu-se ser conivente com o castigo da negrinha Lucrécia. Pobre menina! Pobre dele, que antevia seu castigo também próximo. Levaria uma sova do pai, certamente. Súbito ocorreu-
-lhe ser atropelado por um carro de passeio e assim ser poupado de tudo: da sova, da ladainha paterna, do deporto para o seminário...
      Um trote surdo adentrou a janela, arrancando Damião de seus devaneios. Deu um pulo e precipitou-se sobre a janela, esbaforido. O padrinho e sinhá Rita murmuravam frente à porta sem desviar o olhar um d’outro. “Terá trazido ele alguma notícia de meu pai?” – pensou Damião, que tencionava descer para falar-lhes quando ouviu: “Deixe-o descansar esta noite”. Sinhá Rita disse isso na mais das calmas e o padrinho assentiu com um gesto de cabeça. O que teria ele lhe dito? Abruptamente os dois entraram no coche e imergiram no breu.
      - O que padrinho terá dito a sinhá Rita? Será meu pai que há de vir me buscar? Virá amanhã cedo talvez? – Pensou um pouco. – O que fazer? Fugir?... A noite é longa para os que esperam e curta para os fugitivos. Oh, Deus!... Não! Não mereço clemência. Não fui clemente com a negrinha Lucrécia. – Suspiro. – Sei que vós sois a Bondade, mas não sou digno. Nem sei por que estou no seminário se sou tão mesquinho e conivente com injustiças. Exceto as que me afetam... Que tipo de pároco eu seria se me ordenasse? Livra-me desta missão. Minha alma não é nobre o suficiente.
      Damião regressou à cama e adormeceu pesadamente. Entre sonhos conturbados e desconexos, o pai surgiu-lhe. Acordou cansado, o peito oprimido, com alguém a bater na porta do quarto.
      - Só um minuto – pediu ainda acordando. Vestiu-se rapidamente e correu à porta. Sinhá Rita tinha os músculos da face tensionados, embora se esforçasse por sorrir.
      Lá embaixo o padrinho esperava-os no sofá enquanto as negrinhas, entre elas Lucrécia, estavam pegadas com suas almofadas a fazer renda.
      - Damião! – precipitou-se ele sobre o rapaz.
      - Meu pai está vindo? Ele está vindo? – Damião suava frio. – Por que estão a olhar-me assim?
      - Sente-se – pediu o padrinho com gravidade na voz. – Ontem à noite, seus pais voltavam da ópera quando, numa curva, o coche... – Nesse instante, o padrinho procurou força nos olhos de sinhá Rita. Pigarreou. – O coche virou e eles foram arremessados de um barranco. Eles... morreram com o impacto da queda.
      Damião abriu a boca, mas não saiu qualquer som. Levou um tempo recapitulando os últimos dias desde que fugira do seminário, em especial a noite anterior.
      - Não! Eu não queria que tivesse sido assim! Você atendeu meu pedido do jeito errado!
     - Damião, o que diz? A qual pedido se refere?
     - Não! Assim não! – E saiu correndo porta afora como um cego. Deus teria atendido seu pedido? Atravessou o pátio; alcançou a rua; mas não chegou ao outro lado.
      Alvoroço. Transeuntes amontoaram-se no meio da rua. As pessoas nos carros de passeio desciam para ver o tumulto. Um guarda aproximou-se para dispersar a multidão.
      - Ele morreu – disse secamente ao verificar o pulso de Damião.
      - Um rapaz tão bonito – comentou uma mocinha, entrelaçando as mãos.
      - Morreu de quê? – quis saber uma senhora.
      De culpa.

terça-feira, 7 de maio de 2013

À Mãe





A terra, o chão.
Sustentáculo para os pés, para a casa.
Receptáculo para a semente e os mortos.
Dá a vida e se vivifica com a morte.
Alimenta o homem para alimentar-se dele.
A mãe que gere o filho
E depois se encarrega de seu funeral.
Que acolhe o filho nos braços como Pietá
E, para que sua morte não seja em vão,
Transforma seus restos podres em princípio vital
Para fazer crescer novos brotinhos.
Salve, Mãe!
Dai-me a conformação e o entendimento de teus ciclos.
Vida e morte, não! É vida-morte-vida.
Portanto, quando algo em mim morrer,
Seja uma ideia, um sentimento ou sonho,
Fazei-me semelhante a ti
E dai-me a esperança de vê-los renascer;
Pois, assim como vós, também tenho os meus ciclos.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Mente Dormente Mente


Os bambus performáticos ainda estalam em minha mente.
Deveras mente, dormente, meu coração?
Dormente não sangra. É indiferente.
Sangria intermitente. Inação.

Se mente, mente e obscurece o que deveria já ser morto breu.
O intrínseco pungente desfaleceu.
E perece, e agoniza e revive numa mataria impudica.
Rançoso sentimento tremeluzente que infelicita.

Se cri matar o germe deste verme resquício,
Fui eu a semente que dor (mente) dormiu estúpida.
Fechou-se na carapaça esdrúxula.

Mente mente mente, se queres mentir.
Dormente sensível, paradoxal encobrir.
Mas tu não me há de mais sentir.


sábado, 23 de fevereiro de 2013

Lucidez Oteliana


      Ela estava na banheira quando o marido chegou. No chuveiro, um rapaz se banhava, exibindo-se para a jovem senhora. E ela também lhe lançava olhares furtivos e famintos, sendo correspondida por ele.
      O marido atravessou a sala com seus sapatos grosseiros e o olhar fulminando o que lhe atravessasse o caminho. Logo ouviu o barulho do chuveiro e dirigiu-se ao banheiro. Antes, porém, deteve-se na cozinha, atraído por um frango assado. A mulher cozinhava bem afinal das contas. Mas aquele frango tão dourado, numa noite qualquer, era de se desconfiar. O homem então se lembrou do que despertara chispas em seus olhos e foi ao banheiro, onde a água do chuveiro continuava a correr.
      A mulher, entretida com as espumas e o rapazote, não ouviu em nenhum momento os passos vociferantes do marido.
      A porta se abriu devagar.
      — Desdemona? – disse o marido num tom quase carinhoso.
      — Des-demona? – ela gaguejou, trêmula e suando frio. – Quem é essa?
      O rapazote já pegava a toalha tencionando sair à francesa, mas foi impedido pelo marido. Num tom irônico, o homem voltou-se para a esposa:
      — Ora, querida, não decepcione Shakespeare.
      Não era possível dizer quem estivesse mais apreensivo: a mulher ou o rapazote. Minto, o pavor da mulher era visível até mesmo para um cego.
      O marido aproximou-se da banheira e pediu com uma gentileza atípica:
      — Querida, saia da banheira.
      — O que você vai fazer? – Os olhos dela por pouco não saltavam para fora; temia a reação do esposo. Ainda mais quando ficou sozinha com ele. O amante aproveitou uma distração deste e saiu porta afora, nu mesmo. “Covarde” – pensou a mulher.
      Ela se voltou para o marido, que insistia para que saísse da banheira. Sem argumentos fortes para lhe proteger, obedeceu.
      O homem aproximou-se, puxou a adaga do bolso, acariciou-lhe o pescoço com a lâmina.
      — Sua pele tão alva...
      A mulher arfava, todo o ar do mundo insuficiente era para acalmá-la.
      — Este seu colar... foi presente meu – disse, passando a adaga por dentro da joia.
      — Você está LOUCO! – cuspiu num rompante.
      O marido encarou-a. Seus olhos gélidos lançavam raios, os mesmos raios com que Zeus fulminava os mortais.
      — Você está completamente louco!
      — Não. Estou tão lúcido quanto Otelo. – E puxou a faca contra o colar, as pérolas lançando-se no chão.
      No silêncio sepulcral onde apenas se ouvia a respiração da mulher, aquele barulho a tensionava tanto ou mais que o metal frio em seu pescoço.
      — Vá... Desdemona. Antes que eu a mate. Expurgue sua culpa nos braços do seu amante.
       Ele empurrou a ponta da adaga contra a garganta dela, que apertou os olhos para não ver o próprio sangue. Mas não a perfurou. E, tão logo recolheu a faca, ela saiu desabalada, obedecendo ao marido como sempre.



Texto publicado no Correio das Artes, de 07 de julho de 2013.