Damião encarava o teto. Seus pensamentos
atravessavam-no como um cortejo de almas. A culpa verminosa corroia-o. Ele, que
chegara à casa de sinhá Rita num clamor por liberdade, permitiu-se ser
conivente com o castigo da negrinha Lucrécia. Pobre menina! Pobre dele, que
antevia seu castigo também próximo. Levaria uma sova do pai, certamente. Súbito
ocorreu-
-lhe ser atropelado por um carro
de passeio e assim ser poupado de tudo: da sova, da ladainha paterna, do
deporto para o seminário...
Um trote surdo adentrou a janela, arrancando
Damião de seus devaneios. Deu um pulo e precipitou-se sobre a janela,
esbaforido. O padrinho e sinhá Rita murmuravam frente à porta sem desviar o
olhar um d’outro. “Terá trazido ele alguma notícia de meu pai?” – pensou
Damião, que tencionava descer para falar-lhes quando ouviu: “Deixe-o descansar
esta noite”. Sinhá Rita disse isso na mais das calmas e o padrinho assentiu com
um gesto de cabeça. O que teria ele lhe dito? Abruptamente os dois entraram no
coche e imergiram no breu.
- O que padrinho terá dito a sinhá Rita?
Será meu pai que há de vir me buscar? Virá amanhã cedo talvez? – Pensou um
pouco. – O que fazer? Fugir?... A noite é longa para os que esperam e curta
para os fugitivos. Oh, Deus!... Não! Não mereço clemência. Não fui clemente com
a negrinha Lucrécia. – Suspiro. – Sei que vós sois a Bondade, mas não sou
digno. Nem sei por que estou no seminário se sou tão mesquinho e conivente com
injustiças. Exceto as que me afetam... Que tipo de pároco eu seria se me
ordenasse? Livra-me desta missão. Minha alma não é nobre o suficiente.
Damião regressou à cama e adormeceu
pesadamente. Entre sonhos conturbados e desconexos, o pai surgiu-lhe. Acordou
cansado, o peito oprimido, com alguém a bater na porta do quarto.
- Só um minuto – pediu ainda acordando.
Vestiu-se rapidamente e correu à porta. Sinhá Rita tinha os músculos da face
tensionados, embora se esforçasse por sorrir.
Lá embaixo o padrinho esperava-os no sofá
enquanto as negrinhas, entre elas Lucrécia, estavam pegadas com suas almofadas
a fazer renda.
- Damião! – precipitou-se ele sobre o
rapaz.
- Meu pai está vindo? Ele está vindo? –
Damião suava frio. – Por que estão a olhar-me assim?
- Sente-se – pediu o padrinho com
gravidade na voz. – Ontem à noite, seus pais voltavam da ópera quando, numa
curva, o coche... – Nesse instante, o padrinho procurou força nos olhos de sinhá
Rita. Pigarreou. – O coche virou e eles foram arremessados de um barranco.
Eles... morreram com o impacto da queda.
Damião abriu a boca, mas não saiu
qualquer som. Levou um tempo recapitulando os últimos dias desde que fugira do
seminário, em especial a noite anterior.
- Não! Eu não queria que tivesse sido
assim! Você atendeu meu pedido do jeito errado!
- Damião, o que diz? A qual pedido se
refere?
- Não! Assim não! – E saiu correndo porta
afora como um cego. Deus teria atendido seu pedido? Atravessou o pátio;
alcançou a rua; mas não chegou ao outro lado.
Alvoroço. Transeuntes amontoaram-se no
meio da rua. As pessoas nos carros de passeio desciam para ver o tumulto. Um
guarda aproximou-se para dispersar a multidão.
- Ele morreu – disse secamente ao
verificar o pulso de Damião.
- Um rapaz tão bonito – comentou uma
mocinha, entrelaçando as mãos.
- Morreu de quê? – quis saber uma
senhora.
De culpa.