sábado, 27 de julho de 2013

O Castigo de Damião

Este texto estabelece uma intertextualidade com o conto O Caso da Vara, de Machado de Assis. Escrevi-o, pois sempre senti falta de um 'final' para Damião no texto machadiano.



      Damião encarava o teto. Seus pensamentos atravessavam-no como um cortejo de almas. A culpa verminosa corroia-o. Ele, que chegara à casa de sinhá Rita num clamor por liberdade, permitiu-se ser conivente com o castigo da negrinha Lucrécia. Pobre menina! Pobre dele, que antevia seu castigo também próximo. Levaria uma sova do pai, certamente. Súbito ocorreu-
-lhe ser atropelado por um carro de passeio e assim ser poupado de tudo: da sova, da ladainha paterna, do deporto para o seminário...
      Um trote surdo adentrou a janela, arrancando Damião de seus devaneios. Deu um pulo e precipitou-se sobre a janela, esbaforido. O padrinho e sinhá Rita murmuravam frente à porta sem desviar o olhar um d’outro. “Terá trazido ele alguma notícia de meu pai?” – pensou Damião, que tencionava descer para falar-lhes quando ouviu: “Deixe-o descansar esta noite”. Sinhá Rita disse isso na mais das calmas e o padrinho assentiu com um gesto de cabeça. O que teria ele lhe dito? Abruptamente os dois entraram no coche e imergiram no breu.
      - O que padrinho terá dito a sinhá Rita? Será meu pai que há de vir me buscar? Virá amanhã cedo talvez? – Pensou um pouco. – O que fazer? Fugir?... A noite é longa para os que esperam e curta para os fugitivos. Oh, Deus!... Não! Não mereço clemência. Não fui clemente com a negrinha Lucrécia. – Suspiro. – Sei que vós sois a Bondade, mas não sou digno. Nem sei por que estou no seminário se sou tão mesquinho e conivente com injustiças. Exceto as que me afetam... Que tipo de pároco eu seria se me ordenasse? Livra-me desta missão. Minha alma não é nobre o suficiente.
      Damião regressou à cama e adormeceu pesadamente. Entre sonhos conturbados e desconexos, o pai surgiu-lhe. Acordou cansado, o peito oprimido, com alguém a bater na porta do quarto.
      - Só um minuto – pediu ainda acordando. Vestiu-se rapidamente e correu à porta. Sinhá Rita tinha os músculos da face tensionados, embora se esforçasse por sorrir.
      Lá embaixo o padrinho esperava-os no sofá enquanto as negrinhas, entre elas Lucrécia, estavam pegadas com suas almofadas a fazer renda.
      - Damião! – precipitou-se ele sobre o rapaz.
      - Meu pai está vindo? Ele está vindo? – Damião suava frio. – Por que estão a olhar-me assim?
      - Sente-se – pediu o padrinho com gravidade na voz. – Ontem à noite, seus pais voltavam da ópera quando, numa curva, o coche... – Nesse instante, o padrinho procurou força nos olhos de sinhá Rita. Pigarreou. – O coche virou e eles foram arremessados de um barranco. Eles... morreram com o impacto da queda.
      Damião abriu a boca, mas não saiu qualquer som. Levou um tempo recapitulando os últimos dias desde que fugira do seminário, em especial a noite anterior.
      - Não! Eu não queria que tivesse sido assim! Você atendeu meu pedido do jeito errado!
     - Damião, o que diz? A qual pedido se refere?
     - Não! Assim não! – E saiu correndo porta afora como um cego. Deus teria atendido seu pedido? Atravessou o pátio; alcançou a rua; mas não chegou ao outro lado.
      Alvoroço. Transeuntes amontoaram-se no meio da rua. As pessoas nos carros de passeio desciam para ver o tumulto. Um guarda aproximou-se para dispersar a multidão.
      - Ele morreu – disse secamente ao verificar o pulso de Damião.
      - Um rapaz tão bonito – comentou uma mocinha, entrelaçando as mãos.
      - Morreu de quê? – quis saber uma senhora.
      De culpa.