quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Vesuviana


            A luz dos seus olhos desapareceu, foi calada na noite por denunciar o amor indizível. Sua dança ressecou, pois toda umidade está represada. Seu sorriso fora furtado uma esquina antes, já sem a alegria dos olhos. A boca retesou-se, dormente, impedida de sorrir e de falar. Bem longe de São Petersburgo, a síndrome de Raskólnikov acometeu-a: tudo nela a denuncia. Suas palavras não proferidas, seus cílios escassos, mesmo sua respiração.
            Não lhe cabe mais ser cinza. Não saberia mais sê-lo, sendo agora essa explosão de cores e sensações. Teimosa, porém, insiste. Murcha. Não quer assustá-lo com suas explosões solares. Não podemos começar às tortas, menina. Não há graça e leveza que sustente este represar.
            Não teime – mas ela teima. Ela se nega o direito de ser radiante e graciosa – para tristeza de quem viera ver esta borboletinha no salão – para evitar que suas erupções vesuvianas assustem um certo alguém. E cai, literalmente. Fecha-se em seus próprios espinhos. Caia, menina. Caia quantas vezes puder. Depois levante-se. Não economize sua alegria para um futuro incerto, criança. Dê-nos o presente de ser esta borboletinha que você é.
            Chega de economizar felicidade para amanhã! Se ele não quer ir com você para Maracangalha, vá só. Mas vá! Por você. Estarei lá para ver seus olhinhos escalenos brilharem. Mesmo que seja em pensamento, eu poderei vê-los, cheirá-los e me balançar nos seus cílios escassos.
            Ele ainda pode ser o homem selvagem que você almeja, mas, se não for, certamente o arquétipo despertará em outro, o qual se encantará e amará a sua mulher selvagem. E não só ela, minha criança espoleta, mas também a bruxa, a velha sábia, e todas as outras facetas suas.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Carta de boas-vindas


Eu aceito este amor. Aceito este amor que me toma. Seja bem-vindo ao meu coração. Eu estou disposta a aprender contigo. Cresceremos juntos. Seremos felizes juntos. E isto não é uma profecia.
Eu aceito este amor. Ele chegou na hora certa. Chegou quando meu coração mais precisava. E eu estou disposta a transformar este amor em vivência.
Eu aceito este amor. Aceito, mesmo sem saber se é recíproco. Aceito este aflorar de desejos impudicos, que brotam em mim.
Eu aceito este amor. Estou disposta a me dissolver nele. Estou disposta – com a alma inteiramente aberta - a me dissolver em ti.
Eu aceito este amor que é meu. Aceito, mesmo sem saber se o seu amor existe, se ele já despertou. Aceito, outrossim, sem saber se ele é dedicado a mim.
Eu aceito este amor, embora ainda não consiga ler os teus sinais. E, creio, os meus também não são indubitáveis para ti.
Eu aceito todos os riscos de vivenciar este amor. Porém, tenho uma só esperança: que seja recíproco! E que estejas aberto e disposto a te dissolver em mim, como eu em ti.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Nó cego

            Eu quero amar. Quero muito, mas ainda tenho medo. Medo de abrir o peito; medo de permitir que o Amor faça morada em meu coração novamente. Eu quero amar. Profunda e verdadeiramente. Porém, tenho medo dos pensamentos que me assaltam desde já: quem eu sou, quem fui, sou hoje diferente do que era no meu último mergulho, da última vez que o Amor foi meu inquilino? Serei, hoje, outra mulher e outro rio? Nem Heráclito de Éfeso saberia responder.
            Eu quero amar. Contudo, tenho medo de ser ainda a mesma. Ou, antes, ser diferente e não saber lidar com essa diferença. Estou mais sensível, isto é fato. E esta sensibilização toda me assusta, pois prenuncia uma entrega ao amor ainda mais total e completa, porém não necessariamente recíproca.
            Eu quero amar. Entretanto, não sei o que seria de mim se desse meu corpo e minha alma a mais alguém e não os pudesse recuperar em tempo oportuno.
            Eu quero amar. De verdade. Juro que não minto quanto a isto! Todavia, não tenho forças, ainda, para entregar meu coração a alguém. Eu quero amar, mas não sei como desatar os nós que eu mesma dei para proteger o meu coração e a mim. Eu quero amar! Alguém me ensine a desatar este nó cego!

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Caleidoscopicamente


            O livro e eu. Eu e o livro. A tela do computador entre nós.
            Os olhos passeiam pelas frases, os ouvidos mergulham numa música dentro. As pálpebras pesam. Pesam. Estão muito pesadas. As letras avançam sinuosas, começam a dançar em minha volta. Tudo gira, desfoca. Estou presa. Essas letras malucas não param de dançar. Tudo está pesado. Os olhos não conseguem avançar na leitura. Tudo gira, gira, gira. Acho que vou desmaiar. Onde fica a saída deste caleidoscópio? Eu quero... descer.
            Não sei mais se estou dentro ou fora. O livro e eu. Eu e o livro. Não sei mais diferenciar um do outro. Onde começa a obra e termina a mim? Não há meridiano que nos separe. A mesma massa disforme e inconstante nos perturba... Cada vez mais disforme e gasosa... As letras continuam dançando. Canibais, querem mais do que uma libra de carne minha.
            Estou tonta. As letras dançam, dançam... Onde estou mesmo? Estou em casa, defronte ao computador... Não. As letras dançam. Parem de dançar, malditas! Eu quero ler. Eu quero... dançar. Parem de girar. Eu quero dançar também.
            Tudo se bifurca e ramifica. Quantos corredores e espelhos! Tudo se expande e contrai. Expande e contrai. Como um pulsar. E o labirinto me abraça caleidoscopicamente. Acho que vou desmaiar. Tudo gira, gira, gira... Onde está o Minotauro para me defender? Morfeu já vem me raptar. Eu voo... Quero sonhar que danço.

            Desligo tudo. Mudo. O caleidoscópio me acompanha até a cama. Até amanhã, Dyonelio Machado, Naziazeno, leiteiro... Olá, Morfeu! – Sorrio, em meu último gesto de vigília.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Um minuto de eternidade


            No meio da manhã havia arte. Árvores elegantíssimas, vestidas com o mais puro crochê! Comi-as todas até avançar, sedenta, sobre a malha preciosa. Senti-a, sem pressa. Agora, eu era toda mãos.
            Mãos crocheteiras. Mãos que vestiram a árvore de arte e carinho. Mãos que vibraram em mim quando acariciei a malha colorida de sol. Também eu teci a mim naquelas tranças e pontos, nos seus desenhos e formas. E embebi-me, naquele momento, das cores fluorescentes da manhã.
            O mundo ensimesmou-se. Por um segundo, fui toda mãos e meu corpo pulsou inteiro junto à árvore. Um gozo cinestésico único.
  O corpo sorveu-me por um mísero segundo. E, nesse instante de eternidade, o logos apolíneo desapareceu.
            Os outros, porém, trouxeram-me de volta. O que estou fazendo? – A razão voltou de súbito. Atrás de si, todos os preconceitos e pudores. E a cinestesia esvaiu-se, proibida para mim. Contudo, ainda acariciei a dama de crochê mais uma vez, em despedida.

            A caminho da minha próxima aula, determinei-me: não importa o que a mente diga, foi um minuto de eternidade.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Ao barro, neste dia, voltamos

(Foto: Danilo Borges / Fonte: Revista Corpo a Corpo)

            Do barro veio o primeiro homem, dizem as Escrituras. Ao barro, neste dia, voltamos para reinventarmo-nos.
            Começo, então, a massagear a argila em minhas mãos. E, embora este não seja o nosso primeiro contato, o (re)encontro me fascina tanto quanto. Dentro em pouco, afago a argila com os dedos umedecidos em água. Oh, como fica macia! Como deslizo fácil e fluidamente pela massa (ainda) amorfa!
            Neste instante, uma centelha de luz vibra em minha mente: à semelhança da argila, eu, quando estou úmida, também sou amorosa e afável. Úmida. Quanto tempo não me sinto assim! Dores e asperezas ressequiram-me. Tanto que os grãos de areia se avolumaram e eu parei de produzir pérolas. Como – perguntei-me de súbito -, como posso tornar-me úmida novamente?
            Uma pergunta difícil de responder quando se está tão ferida. Contudo, gigante em sua pequenez, uma palavrinha irrompe das chagas: Amor. Não um amor, mas o Amor. Só ele – e somente ele – é capaz de me umidificar novamente. Um questionamento, porém, chega a tomar-me de assalto: onde (re)encontrar esse Amor? Reencontrar. Todavia, já não tenho certeza se o encontrei alguma vez.
            Reconheço: é difícil desligar a mente, mesmo em vivências muito profundas como esta. Talvez seja um vício da escritora isto de sentir por palavras. Sentir, pensar. Pensar é tomar consciência do sentir. É saber que se sente o que se sente. Mas estou aprendendo a sentir apenas. Sentir sem pensar.
            Enquanto isso, observo minhas mãos. A argila que as envolve está quase totalmente seca e eu pouco consigo mexer os meus dedos. Onde estão as mãos da escritora? As mãos macias e delicadas de antes? Que obras – questiono a mim mesma –, que obras posso construir com as mãos craqueladas desse jeito?
            Agora, mais uma vez, bebo da água, sedenta por deixá-la correr pela minha palma e dedos e, então, vejo toda ressequidão se esvair.
            Mãos. Mãos minhas. Mãos suas. Sim, agora somos dois; somos vários. A argila, então, torna-se um elo de unidade para os pares. Você, meu rapaz, tem um toque muito sensual, permita-me dizer. Eu, ao contrário, empreendo força e pressiono sua pele como a querer adentrá-la. Suavidade, Sara – insisto em relembrar. Não que eu seja agressiva, mas preciso (ainda) pensar a delicadeza para imprimi-la no toque.
            Enfim consigo acessar este meu lado yin. Ao tocar outros, os outros que não fizeram par comigo, vejo emergir todo o meu espírito feminino, apesar do excesso de dureza em minha personalidade. E, por um momento, sou toda mãos. Mãos embebidas de argila, que tocam suavemente as almas humanas que ali estão. Somos, então, todos, barro.
            Do barro viemos. Ao barro, neste dia, voltamos para reiventarmo-nos.