sábado, 23 de fevereiro de 2013

Lucidez Oteliana


      Ela estava na banheira quando o marido chegou. No chuveiro, um rapaz se banhava, exibindo-se para a jovem senhora. E ela também lhe lançava olhares furtivos e famintos, sendo correspondida por ele.
      O marido atravessou a sala com seus sapatos grosseiros e o olhar fulminando o que lhe atravessasse o caminho. Logo ouviu o barulho do chuveiro e dirigiu-se ao banheiro. Antes, porém, deteve-se na cozinha, atraído por um frango assado. A mulher cozinhava bem afinal das contas. Mas aquele frango tão dourado, numa noite qualquer, era de se desconfiar. O homem então se lembrou do que despertara chispas em seus olhos e foi ao banheiro, onde a água do chuveiro continuava a correr.
      A mulher, entretida com as espumas e o rapazote, não ouviu em nenhum momento os passos vociferantes do marido.
      A porta se abriu devagar.
      — Desdemona? – disse o marido num tom quase carinhoso.
      — Des-demona? – ela gaguejou, trêmula e suando frio. – Quem é essa?
      O rapazote já pegava a toalha tencionando sair à francesa, mas foi impedido pelo marido. Num tom irônico, o homem voltou-se para a esposa:
      — Ora, querida, não decepcione Shakespeare.
      Não era possível dizer quem estivesse mais apreensivo: a mulher ou o rapazote. Minto, o pavor da mulher era visível até mesmo para um cego.
      O marido aproximou-se da banheira e pediu com uma gentileza atípica:
      — Querida, saia da banheira.
      — O que você vai fazer? – Os olhos dela por pouco não saltavam para fora; temia a reação do esposo. Ainda mais quando ficou sozinha com ele. O amante aproveitou uma distração deste e saiu porta afora, nu mesmo. “Covarde” – pensou a mulher.
      Ela se voltou para o marido, que insistia para que saísse da banheira. Sem argumentos fortes para lhe proteger, obedeceu.
      O homem aproximou-se, puxou a adaga do bolso, acariciou-lhe o pescoço com a lâmina.
      — Sua pele tão alva...
      A mulher arfava, todo o ar do mundo insuficiente era para acalmá-la.
      — Este seu colar... foi presente meu – disse, passando a adaga por dentro da joia.
      — Você está LOUCO! – cuspiu num rompante.
      O marido encarou-a. Seus olhos gélidos lançavam raios, os mesmos raios com que Zeus fulminava os mortais.
      — Você está completamente louco!
      — Não. Estou tão lúcido quanto Otelo. – E puxou a faca contra o colar, as pérolas lançando-se no chão.
      No silêncio sepulcral onde apenas se ouvia a respiração da mulher, aquele barulho a tensionava tanto ou mais que o metal frio em seu pescoço.
      — Vá... Desdemona. Antes que eu a mate. Expurgue sua culpa nos braços do seu amante.
       Ele empurrou a ponta da adaga contra a garganta dela, que apertou os olhos para não ver o próprio sangue. Mas não a perfurou. E, tão logo recolheu a faca, ela saiu desabalada, obedecendo ao marido como sempre.



Texto publicado no Correio das Artes, de 07 de julho de 2013.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Carta de Dispensa



      João Pessoa, 14 de fevereiro de 2013.



      Senhor Narrador


      Venho através desta comunicar-lhe que não estou satisfeita com os seus serviços. O senhor, por motivos que me são desconhecidos, tem se mostrado deveras preguiçoso, formulando frases óbvias e superficiais. No momento de sua contratação, eu pessoalmente lhe dei todas as informações cabíveis e necessárias acerca do enredo e das personagens para que o senhor tivesse condições de construir um texto profundo e instigante, honrando o cargo de narrador onisciente que lhe fora conferido. O senhor, todavia, mostrou-se mesquinho, retendo as informações para si.
      De minha parte, reconheço que lhe dei orientações precisas para ser misterioso, para usar de metáforas e demais figuras de linguagem a fim de dar um caráter onírico ao romance. Porém, o senhor há de convir que entre mesquinhez e mistério existe uma notória diferença.
      Leitores contratados para acompanhar o processo de criação do romance são unânimes em reclamações quanto ao seu comportamento linguístico e literário e sugerem transformações urgentes. Eu estou de pleno acordo com eles, pois o senhor tem feito jus a tais reivindicações.
      Em virtude dos inúmeros e-mails que lhe mandei convocando uma reunião sem, contudo, obter resposta, fez-se necessário recorrer a medidas mais imperiosas. Portanto, esta é uma carta de dispensa.
      Tão logo o senhor devolva este documento assinado, eu entrarei em contato com um jornal de grande circulação para colocar um anúncio divulgando a abertura de uma vaga para o cargo de narrador onisciente.
      Fugindo dos moldes formais desta, confesso: rezarei para conseguir um narrador mais eficiente e disposto a trabalhar que o senhor.


      Atenciosamente
      A Escritora