quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

De Apolo à Ártemis

Imagem by: Pinterest

            Excelentíssimo 2017,

      Quero dizer que cansei. Cansei de ser yang o tempo inteiro. Cansei de ser a amazona ininterruptamente. Simplesmente cansei de lutar indefinidamente. Minha espada, destarte, será apenas para quando for imperioso usá-la. Cansei de desgastar-me. Cansei de ser quente e ativa. Cansei de ser o sol apolíneo, diurno, claro, veraneiro. Cansei de ser angulosa e querer penetrar o mistério das coisas. Cansei. Cansei de ser a guerreira valente e durona sempre. Cansei de ser retilínea, certinha, e querer avançar a cada instante.
            Em 2018, mandarei Apolo para o raio que o parta! Talvez Júpiter, regente do ano vindouro, dê um jeito nele. Enquanto isso, serei Ártemis, a lua. Serei a noite fresca e branda. Serei o inverno passivo e escuro. Serei a terra feminina e úmida. Serei curvilínea e de gestos arredondados. Estas serão minhas novas armas. Serei a água, expansiva e fluida. Serei a mansidão e a feminilidade. Serei o yin tão ofuscado esses anos todos pelo yang dominante e dominador.

Com meus mais sinceros votos de êxito,
Sara Carvalho


segunda-feira, 20 de novembro de 2017

O dia em que ganhei uma música

Um dia de domingo. Os domingos, geralmente, são monotônicos; terrivelmente lineares e previsíveis. Este, porém, foi atonal. Tantas coisas aconteceram, que não sei precisar qual foi a melodia predominante. Aliás, para quê fugas? Já fugi tanto! Então, até às paredes confesso: sinto o largo tornar-se allegro.  O noturno, que durou cinco anos, promete reverter-se em tocata.

Um dia de domingo. Na verdade – preciso te falar -, o movimento iniciou-se no sábado. Como uma boa filha de Saturno e de Janaína, o meu dia mais bem arranjado é o sábado. Entretanto, eu não previ que o domingo fugiria tanto assim do estribilho. Uma fuga deliberada. Um desconcerto da prolepse.

Um dia de domingo. O dia em que ganhei uma música. A música não é sua nem foi inspirada por mim. No entanto, ela me foi dada por você e agora é minha. A sua versão é, doravante, parte desta disritmia que sou eu. Às vezes, sou uma 5ª de Beethoven. Outras, uma Blue Moon, na voz da Ella. E, muito raramente, uma Meditation from Thais, na flauta de pan do Zamfir.

Um dia de domingo. O mais dissonante de todos. E esta dissonância, ao que harmoniza, caminha compassadamente para uma consonância. Consoante, dá rima. Afinal, não dá para fugir dessa coisa de pele.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Oração ao feminino


Eu saúdo o feminino em mim. Eu saúdo o que há de mulher em mim.
Eu sou uma mulher. Sou uma menina. Sou uma anciã.
Eu sou uma bruxa. Sou uma princesa. Sou uma facilitadora de Biodanza.
Eu sou exatamente quem eu quero ser.
Eu sou exatamente como eu sou.
Eu sou mulher. Sou feminina.
Eu, deste momento em diante, aceito a minha feminilidade, com toda a sua força e intensidade; com toda a sua suavidade e nutrição.
Eu sou suave, sou nutritiva; sou intensa e sou forte, como uma guerreira.
Eu sou sábia.
Eu tenho as bases que a Mãe-Terra me dá.
Eu sou a vida. Sou a criatividade, pois é a criatividade que gesta ideias; que gesta relações; que gesta transformações existenciais.
Eu sou mulher.
Eu me aceito como mulher.
Eu aceito os meus pensamentos de mulher, os meus sentimentos de mulher, as minhas sensações de mulher.
Eu aceito o meu corpo de mulher.
Eu aceito a minha afetividade e a minha sexualidade de mulher.
Eu aceito a minha capacidade de seduzir e de cativar.
Eu aceito tudo o que há de feminino em mim.
Eu aceito o meu yin tanto quanto aceito o meu yang.
Eu aceito a minha anima e o meu animus.
Eu aceito a minha força e a minha delicadeza.
Eu aceito a minha feminilidade.
Eu aceito a minha beleza própria. Aceito os meus cabelos, meus olhos, meu rosto, minha boca, meus seios, meu ventre, minha vagina.
Eu aceito os meus pés, que tocam a terra todo o tempo.
Eu aceito tudo o que há de feminino em mim.
Eu aceito a mulher que eu sou. Aceito a minha essência e todo o potencial feminino que eu tenho.
Eu aceito tudo o que há de feminino em mim.
Eu me aceito como feminina.
Eu expresso o meu feminino com o coração aberto.
Eu expresso o meu afeto, a minha sedução, o meu carisma, a minha sensualidade e a minha libido.
Eu expresso tudo o que vai no meu coração e no meu sexo, sem qualquer resistência; sem qualquer pudor.
Eu expresso a mulher que eu sou, sem máscaras, sem couraças.
Eu me expresso.
Eu expresso o feminino em mim.
De hoje em diante, eu sou a mulher que sou.
Eu me aceito como a mulher que sou, com a força que tenho, com a beleza que tenho, com os sonhos que tenho, com os sentimentos que expresso, com o verbo, que me brota do ventre e do coração.
Eu sou o feminino que existe em mim. Hoje e para sempre.

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Impregnada de pele


(Carta para um futuro amor)

            Não vai ser fácil para você. Não sou mais pura. Tenho um sem-número de memórias impregnadas em minha pele. Toques profundos e intensos. Eles fazem parte da minha pele. Quem me dera pudesse arrancá-los! Seria mais fácil para você. Eu não teria tantas marcas e seu toque seria impresso em mim rapidamente. Eu seria aquela primeira folha que passa pelo mimeógrafo e fica com as letras bem nítidas. Em vez disso, tenho muitas marcas; várias impressões sobrepostas.

            Não vai ser fácil para você. Você precisará resignificar o toque, para que o seu toque se sobreponha aos anteriores. Sua sensibilidade precisará ser forte o suficiente para resgatar a minha. São camadas e camadas de toques, que precisam ser diluídas. Tenha paciência comigo. Tenha paciência com o seu toque, caso ele não seja impresso com nitidez logo de primeira. O tempo da pele é outro. Tenha paciência comigo. Lave as minhas memórias, como as baianas lavam o Bonfim.

domingo, 18 de junho de 2017

Tango para um

O bandoneon começa.
O corpo vai junto, se enrosca.
A cabeça cede
E os cabelos negros se espalham.
Não há vento.
Fogo é o que há.
O tronco se arqueia.
O peito se lança, se abre.
A pélvis, solta, entregue...
Ah, a pélvis chicoteia o vento!
O corpo inteiro é prazer.
E dança.
Não me governo mais.
É o tango.
Eu sou o tango.
Giro e voo neste ambiente minúsculo.
Suavemente, desço ao chão.
Não há testemunhas.
O fogo é meu e para mim.
Estou totalmente entregue ao prazer e ao tango.
Então, embeveço, entorpeço, crepito inteira.
O corpo se enrola, se embola.
O corpo inteiro é prazer.
Levanto-me, serpente, outra vez.
O bandoneon cessa.
O prazer continua.

terça-feira, 21 de março de 2017

À sua gargalhada




       Ouvir sua gargalhada, depois de tanto tempo, foi o meu presente do dia. Uma comoção inesperada tomou-me. Arrancou-me sorrisos também. Arrancou-me o brilho esquecido do olhar. Do resplendor interno, brotaram lágrimas ao sol do meio-dia. Lágrimas atípicas. Lágrimas brilhantes, doces. Lágrimas de Amor.
          Ouvir sua gargalhada, depois de tanto tempo, foi o meu presente do dia. Uma quinta-feira como outra qualquer. Quem poderia imaginar que tamanha emoção me tomaria? Uma quinta-feira como outra qualquer.  Mas a sua gargalhada não foi como outra qualquer. Foi singular.
          Ouvir sua gargalhada, depois de tanto tempo, foi o meu presente do dia. Uma gargalhada. Uma, apenas. Uma gargalhada tão singela e despretensiosa, tão espontânea e sincera, que mudou o meu dia.
        Ouvir sua gargalhada, depois de tanto tempo, foi o melhor presente que eu poderia ter recebido. Agradeço por ter podido estar presente, para ouvi-la, saboreá-la e comover-me com ela.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Disritmia

            tamborete de madeira Foto gratuita
        Desde que iniciei o curso de Introdução à Métrica Latina, um mês atrás, tenho pensado bastante sobre o ofício de escritor. Na análise de poemas alheios, percebi que eu não tenho ritmo. Melhor dizendo: meu ritmo é uma disritmia. Aqui e acolá há uma quebra na composição e, como já disse o meu professor de Métrica, “um pé quebrado mata não só o verso, mas também o poeta”. Todas estas (re)leituras de um banquinho claudicante têm me trazido o samba de uma nota só: se eu não tenho ritmo, como posso ter escrito tantas coisas (e até publicado!) ao longo destes dezoito anos, desde que compus meu primeiro texto ficcional?
          Hoje, em pleno carnaval, eu, me deliciando com o romance de um outro professor meu, percebi que, para cada tipo de cena, ele usa uma linguagem específica. Para as cenas de amor e sexo, uma linguagem carinhosa, repleta de eufemismos, metáforas e até diminutivos, os quais dão ao texto um tom mais terno e doce. Nas cenas de música, uma linguagem bem mais enlevada, exprimindo todo o êxtase que a música faz ressoar em si e no protagonista do romance. Já nas cenas de vingança, a linguagem é mais bruta, mais crua e, em alguns momentos, até grotesca. E toda esta multiplicidade de acordes e tons me fez perceber a monotonia dos meus textos, que trazem um único tom, uma única linguagem, numa linearidade sem fim.
          Esta não é a primeira crise minha como escritora. Minha carreira, se assim posso chamá-la, está entre a 5ª sinfonia de Beethoven e a Tocata e Fuga, de Bach. Contudo, este ano estou me atendo mais aos pés, que antes não via. Ou, antes, não ouvia. Eu até me detinha na tecitura do texto, mas nunca havia reparado no ritmo – ou na ausência dele. Esta ampliação do ouvido do olhar veio a partir do curso de Métrica, que, embora seja voltado para a poesia, tem me mostrado na prosa, especialmente na minha, a musicalidade que meus olhos eram incapazes de reproduzir – por pura ignorância.
          Certamente, depois de tantos acordes, eu acorde. Quiçá seja uma escritora melhor. Sem dúvida não serei, porém, a mesma.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Cicatriz

            Eu era pequena, bem pequena, e muito ativa, muito traquina. Um dia, um moço, que nem me lembro mais o rosto nem o tipo físico, um moço apenas, estava consertando o sofá da casa da minha avó. Casa da minha avó é um modo de dizer, porque era a minha casa naquela época. Não era uma propriedade minha, mas era onde eu morava. Então era a minha casa. Voltando ao moço que estava consertando o sofá, ele estava fazendo algum remendo na estrutura de madeira do sofá. Enquanto isso, eu, com toda a minha alegria infantil, estava sobre o encosto do sofá, dançando. Eu estava lá, completamente envolvida por aquele “ilariê”, completamente imersa na minha própria alegria. Até que o meu passo foi maior do que o espaço e eu caí. Antes de encontrar o chão, porém, minha testa foi ao encontro do esqueleto do sofá. Quando finalmente beijei o chão, minha testa se abriu ao meio. Viram apenas o sangue e me levaram para o hospital. A partir daí, eu não estava mais consciente. Não me pergunte o que aconteceu no hospital. Eu não poderei dizê-lo. E que bom que não me lembro! Mas me lembro da alegria que senti, quando retornei à minha casa. E da alegria que eu sentia cada vez que dizia a alguém: “Ganhei cinco pontos!”. Um verdadeiro espólio de guerra. Ganhei cinco pontos! À medida que fui crescendo, a cicatriz, que antes era exatamente no meio da testa, foi se deslocando e foi subindo. Hoje, ela está acima à esquerda, quase rente à raiz do cabelo. Hoje, ela está quase invisível. Namorados meus chegaram tão perto e mesmo assim não a viram. Ela é só minha. É a minha cicatriz. É o meu espólio de guerra. É a lembrança mais nítida que eu tenho de cair e levantar-se com alegria. Que eu possa me lembrar desta queda e mais ainda de como soergui intacta e feliz.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Entre dedos


Sonhei contigo esta noite.
Vi, nitidamente, os seus dedos longos e ossudos.
Vi o rosado da pele e cada dobrinha desta.
Senti os seus dedos acariciando os meus suavemente.
Suavemente também, enrosquei um de meus dedos num dedo seu.
Quanto afeto a percorrer nossas juntinhas dos dedos!
E eu, que tive essa vivência onírica linda, acordei ainda em vivência,
Sentindo o seu e o nosso carinho em todas as minhas juntinhas
E, mais ainda, junto ao coração.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Encanto


Olhos fugidios.
Assustados?
Não crio.
Assim não.
Crio-os, talvez, cautelosos.
Temes meus olhos
Por demais encantados?
Te assustas por eu me deliciar
Neste mergulho em teus rios?
Não queres mostrar-me o fundo de ti?
Quero tanto me deliciar com teu verdume!
Quero tanto deliciar-me com o mais profundo que podes ser.
O meu gozo com tua presença é tão esplêndido!
Não queres contemplá-lo comigo?
Ou te assustas com este meu erotismo todo?
Erótico, minha estrela, é este meu encanto infantil.
Encanto-me com tudo!
Se isto é ser por demais erótico, então permita-me sê-lo.
Se tens em mim alguém deveras sexual por gozar tão fácil,
Então aceito teu ponto de bom grado,
Pois não deixarei de gozar nos olhos teus.
Afinal, sou poeta e não negarei a lira de Orfeu.