segunda-feira, 5 de maio de 2014

Eu, curumim



Foto: Sara Carvalho

      Estação das Artes – João Pessoa

      Eu cheguei lá como professora (em formação), mas ao ver aquela pedra maior que eu na entrada, já me transformei em aluna; criança levada e curiosa que larga a mão do pai e corre para ver tudo, cheirar tudo, degustar em pensamento. Aquela pedra, impregnada de símbolos rupestres, parecia dizer-me: “Nossa história está bem fundada”. Tão bem fundada que soa enterrada. As raízes são fortes, contudo estão sob a terra, sob toneladas de versões mal contadas que perpassam geração após geração e que contemplam apenas um prisma do cristal. E eu estava lá para desenterrar essas raízes. Fui à Estação das Artes para desmistificar o indígena e os Séculos Indígenas no Brasil.
      Assim que entrei, desprendi-me de qualquer mão que pudesse me conduzir. Aquela experiência era só minha e eu reivindiquei o direito de vivê-la com meus próprios sentidos, dando total liberdade à minha imaginação e à minha alma de artista e poeta. Livre, a primeira coisa que me chamou a atenção foi o firmamento de astros-gentes nas paredes ao longo da sala fria. Um frio artificial, mas esqueci-me um instante da tecnologia e mergulhei na mata para sentir o perfume úmido das folhas; o aconchego das árvores imponentes. Sob os meus pés, o tapete de fibra quebrava um som de folhas secas. Uma oca labiríntica contornou as árvores feito cobra, cobrindo todo o salão.
      Um monitor veio até mim, um rapazinho simpático, entretanto aquela experiência era minha e egoisticamente o dispensei. Perdoe-me. Não podia afogá-lo em minhas vivências.
      Ante a cobra de palha e bambu, arrisquei-me ser devorada por ela. Dentro de seu oco, a oca trazia fotografias de povos humanos inomináveis. Digo inomináveis não por não saber o nome dos povos, e sim por ser o nome o que nos separa dos demais. E ali estava um sem-número de vidas retratadas em objetos, utensílios e momentos cristalizados. Eu também, em meu íntimo, estava cristalizando o meu momento ali, assim como o estou lapidando através deste texto.
      Com certo pudor, percebi que não sabia nada sobre aquele mundo. O que ouvira durante toda a minha vida foi um conto de fadas; um ponto de vista que não trazia o ponto, só a vista.
      Devo confessar que, mesmo criança traquina, eu me contive. Sim, eu poderia ter levado minhas experiências táteis mais além, mas fiquei com medo que desmoronasse tudo. Na maraca, entretanto, não resisti: peguei-a, senti seu peso, arrisquei-me a tocá-la para adivinhar que tipo de semente a musicalizava. Linda.
      Não obstante tantas cores, gestos e cheiros, ainda senti falta de curumins correndo pelo salão, contando os astros-gentes nas paredes de céu, se balançando nas redes – eu me atrevi a deitar em uma – e de um velho sábio sentado num toco de árvore, contando suas histórias para os jovens. Senti falta do descampado. O cheiro forte de palha me levou a alguma aldeia, contudo, se fosse a céu aberto, poderíamos ver os astros-gentes reais e sentir a brisa do mar.
      Regresso lá enquanto escrevo, refazendo os caminhos para construir a memória. Um domingo muito grato, sem dúvida.

Um comentário:

Gláucia Machado disse...

Emocionante seu relato, Sara. Gostei muito do texto e compartilho a sensação de falta: também experimentei um gosto de ausência, cadê os curumins correndo,que saudade dos índios de verdade e de suas casas habitadas nas florestas, longe de museus, sem invasão colonizadora. Beijo potiguar!