quarta-feira, 6 de julho de 2011

Carta Apelativa


         Mundo das Letras, Cinco de Julho de 2011

         Meu querido Português

         Gosto tanto de ti. Então por que não me ajudas um pouquinho? Tu sabes a norma culta, aquela velha ranzinza que quer que tudo seja à sua maneira? Pois é. Ela insiste em colocar todas as pessoas na minha frente! Absurdo! Até mesmo quando é minha própria boca quem pronuncia os verbetes, o você/ele vem obrigatoriamente antes de meu singelo eu. E, se eu insisto em me destacar tomando a dianteira, ela logo vem me sublinhar com aquela tinta vermelha. Arbitrária! Não tens como dar um jeito nela? Eu queria me mostrar para o mundo, mas com todos esses vocês e eles antes do meu eu, sem contar as conjunções, verbos, adjetivos, substantivos e advérbios que me cercam por todos os lados, acima da minha cabeça e abaixo de meus pés, enlaçando todos os meus membros, eu não tenho como. Fico muito escondida no texto; transparente no contexto.
         Com tantas reformas ortográficas, ainda não se sucedeu uma que seja a favor do primeiro pronome pessoal do caso reto (singular). Veja bem: primeiro. Então por que ele tem que vir depois? Eu não entendo.
         A norma culta é tão abusada, não acredito que ela seja tão altruísta a ponto de sempre colocar os interesses dos outros antes do seu. À propósito, ela é o oposto. Caso contrário, não imporia tantas regras e nem seria tão taxativa: “Ou é do meu jeito ou está errado!”. Ela é do tipo que manda fazer uma coisa e faz outra. Que tipo de exemplo ela está querendo dar para os novos desbravadores da língua? Nós já somos antigos nesse ramo e conhecemos bem a peça. Mesmo assim não me conformo. Nem me conformarei nunca.
         Não sou dada a desregramentos, mas gostaria que o meu eu tivesse um pouquinho mais de espaço entre as reticências para mostrar a plenitude e a beleza de suas duas letras.
         Era só isso que eu tinha a dizer.

Com estimas,
Sara Regina Carvalho

2 comentários:

Anderson Meireles disse...

Eu, que sou um poeta indisciplinado, adorei!
Como tudo o que você escreve... perfeito!
Abraço!

Giane disse...

"aquela velha ranrinza", adoro!
Não costumava me perguntar o porquê, depois deste texto, acho injusto o 'eu' vir por último...
Divertido!